sábado, 13 de setembro de 2014

O último Viking nos Açores


Ilha Terceira, Serra do Cume (Altar, tempo presente)
A neblina dissipou-se, e com ela a chuva caprichosa própria desta terra, mas o vento, orgulhoso, característico da serra permaneceu para me vendar os olhos com meu cabelo. Tentativa infrutífera de me deter, pois, este caminho já o sabia de cor, tantas foram as vezes percorridas nele. Não me incomoda esta ventosidade, lembra-me de casa. Amanhecia sem o céu dar graça ao sol, as nuvens egoístas guardavam-no só para si. Não fosse o que me esperava no topo, a caminhada podia tornar-se penosa para alguém da minha idade. Meus compatriotas troçam dizendo que eu jamais conhecerei Valhalla (1), tantas eram as minhas preces a Tyr (2). Não rezava à divindade para me poupar a vida, acolheria de bom grado uma boa morte numa disputa como todo guerreiro, a maior das honras, se fosse essa a sua vontade. Pedia antes que guiasse meus barcos com sua estrela, não tenho culpa se com isso também guiava meu machado pelo aglomerado de inimigos.
Circundando as pedras sagradas, depois de alguma erva húmida pisada, o altar. Chegado lá tracei um sorriso sinuoso contrastando com meu interior reto. Contemplei do planalto a magnífica paisagem à minha frente. Custava-me deixar esta terra fértil. Para os de ocidente somos bárbaros saqueadores, para os de oriente somos sanguinários, no sul vêem-nos como demónios, mas no norte nós apenas somos. Adoramos riquezas como qualquer homem ambicioso de qualquer nação, mas aquilo que temos como maior valor é a terra. Esta é a razão da nossa inquietude e expansão, não existe maior tesouro. Aqueles que não percebem isso têm-nas em abundancia e veem-lhe devolvido o suor quer de verão como de inverno sem penúria de comida.
Meus dedos cursam a runa de Tyr que cravei, mas descanso meus olhos noutra runa, ali muito antes do meu tempo. Olhando em redor absorvo a solidão em que me encontro, e percebo o porquê de terem escolhido a runa de Is (3). A busca de isolamento para renovação pessoal e ao mesmo tempo prestar tributo a esta linda terra e ao que nos pode dar.
O altar era de rocha solida brotada do solo, no seu centro uma bacia que a tal chuva briosa mantinha cheia; um lugar espiritual. Lavei o meu rosto e cabelos, purificando-me. Os suspiros vencem-me vezes sem conta, vou partir deste pouso descoberto por nós tolos que pusemos à prova mitos de outros. Meus filhos já seguiram nos seus drakares (4) no dia anterior, mas eu não podia partir sem antes vir aqui, sem antes a ver. Obrigações que nos roubam de um sonho e riscam da história o nome que seria imortalizado, Lofn filho de Aegir. Agora, como os indígenas desta terra antes de mim, eu vou partir para nunca mais voltar, e deixar esta terra ser reclamada por quem vier depois de mim.
Ilha Terceira
Desde que me lembro, que tenho esta necessidade recorrente de encontrar novos mundos. Não necessariamente para lá do horizonte, mas algo fantástico escondido no meio de nós. Esta não era uma ilha sem seus segredos, vejo-os adormecidos em todo o meu redor, gigantes de pedra, faces e punhos repousando no solo até Ragnarok (4), quando medirão forças com os exércitos de Odin (5).
A minha curiosidade vai para além da do meu povo e isso vem de um sentimento, não, de uma certeza, não pertenço a lado algum. Como memória mais remota lembro-me de olhar o meu reflexo na água como estou agora e perguntar-me: “Que mundo se esconde por trás da superfície de água que me reflete?”. Tentava desmascarar o meu sósia num movimento que não o meu e até encurralá-lo. Perguntava-me se teria uma vida ligeiramente diferente da minha e se pensava da mesma forma que eu.
Ilha Terceira
O ano já me ilude, mas foi numa lua como a que nasci que meu reflexo e eu finalmente rompemos com o que era suposto fazermos e de um salto ficou do meu lado, tão real e de carne e osso como eu. Não bastando a manifestação portentosa, tomou forma feminina rivalizando com a maior das belezas de Asgard (6). Não foi difícil reconhecer-lhe uma versão melhorada de mim mesmo. Ela que roubou-me a atenção e fez de mim também ladrão.
O vento é finalmente domado, fazendo prever o que vinha a seguir. Em rocha pura, vejo o borbulhar da água ferver sem outra explicação que não uma fora deste mundo. Do vapor vejo-a tomar forma. Meus joelhos enfraquecem e os meus olhos pousam no chão, Dalla era novamente minha para adorar. Seu gentil toque afaga-me a face barbuda. Não me disse nada, mas fez-me sentir muito. Segredo-lhe que nos veríamos novamente, mas continuei abraçado pelo silêncio. Amuada, triste com a minha partida, não que não nos fossemos ver novamente, existe altares semelhantes de onde venho, determinantes às nossas visitas insulares e parcas de uma relação de vontade com limites. Não a censuro, meu coração emudecia também, o mundo melindrava-me sem ela. Embora ela não deixasse-me dizê-lo, eu amava-a como um ser de livre pensamento que pensa freneticamente e como um barco ancorado ao sentimento. Veio a mim à alguns anos respondendo a uma prece silenciosa que não me atrevi vozeirar, e partilhámos desde então o que é negado àqueles de mente afunilada. Por fim Dalla desvaneceu-se no ar, mesmo antes de duas figuras ao longe pescarem-me o olhar, manchando o verde dominante com seus escudos redondos pintados de vermelho e azul. Era altura de ir.




(1)      Salão dos guerreiros caídos em batalha
(2)      Deus da batalha
(3)      Gelo
(4)      Fim do mundo
(5)      Rei dos Deuses
(6)      Reino dos Deuses
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